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domingo, 17 de outubro de 2010

Carta de recusa de Sartre ao Prêmio Nobel em 1964




“Lamento vivamente que este assunto tenha tomado
aparência de um escândalo; um prêmio foi concedido e
alguém o recusa. Isto se deve a que não fui informado
devidamente a tempo do que se preparava. Li no “Figaro Litteraire”,
de 15 do corrente mês, sob a assinatura do correspondente sueco
deste jornal, que a maioria na Academia Sueca era a meu favor,
mas não havia sido ainda definitivamente fixada, pelo que bastava
escrever uma carta à academia, o que fiz no dia seguinte, para pôr
um ponto final ao assunto e não mais se falasse dele.
Eu ignorava, então, que o Prêmio Nobel é outorgado sem que se
peça a opinião ao interessado e pensei que ainda era tempo de
impedi-lo. Mas compreendo muito bem que quando a Academia
Sueca faz sua escolha, já não pode voltar atrás.
As razões pelas quais renuncio ao prêmio não se referem nem à
Academia Sueca, nem ao Prêmio Nobel em si, como já expliquei
em minha carta à Academia. Nela invoquei duas espécies de razões;
razões pessoais e razões objetivas.
As razões pessoais são as seguintes: minha negativa não é um ato
improvisado. Sempre recusei as distinções oficiais. Quando,
depois da guerra, em 1945, me propuseram a Legião de Honra,
recusei-a, apesar de possuir amigos no Governo. Igualmente nunca
aceitei ingressar no Colégio de França como sugeriram alguns de
meus amigos.
Esta atitude é baseada em minha concepção do trabalho do escritor.
Um escritor que assume posições políticas, sociais ou literárias
somente deve agir com meios que lhes são próprios, isto é, com a
palavra escrita. Todas as distinções que possa receber expõem seus
leitores a uma pressão que não considero desejável. Não é a mesma
coisa seu assino Jean-Paul Sartre que se assino Jean-Paul Sartre,
Prêmio Nobel.
O escritor que aceita uma distinção deste gênero compromete,
também, a associação ou instituição que a outorga: minhas simpatias
pelos guerrilheiros venezuelanos somente a mim comprometem,
mas se o Prêmio Nobel Jean-Paul Sartre toma partido pela resistência
na Venezuela, arrasta consigo todo o Prêmio Nobel como
instituição.
O escritor deve, pois, negar-se a se deixar transformar em Instituição,
mesmo que isto se verifique pela mais honrosa forma, como no
caso presente. Esta atitude é inteiramente pessoal e, evidentemente,
não representa nenhuma crítica contra aqueles que já foram
premiados. Tenho muita estima e admiração por muitos dos laureados
que conheci pessoalmente.
Mas minhas razões objetivas são as seguintes:
– O único combate atualmente possível no campo da cultura é o da
existência pacífica das duas culturas, a do Leste e a do Oeste.
Não quero dizer com isso que seja necessário que se dêem abraços.
Sei perfeitamente que o confronto entre estas duas culturas deve,
por necessidade, adotar a forma de um conflito, conflito que deve
ter lugar entre homens e entre culturas, mas sem intervenção de
instituições.
Sinto pessoal e profundamente as contradições entre as duas culturas:
sou feito dessas contradições. Minhas simpatias vão inegavelmente,
para o socialismo e para o que se chama o Bloco do Leste,
mas vivi e me eduquei numa família burguesa e numa cultura burguesa.
Isto me permite colaborar com todos aqueles que querem
aproximar ambas as culturas. Espero, naturalmente que a melhor
ganhe, isto é, o socialismo.
Por isso é que não posso aceitar nenhuma distinção concedida pelas
altas instâncias culturais, tanto de Leste como do Oeste, mesmo
que admita sua existência. Embora todas as minhas simpatias vão
para o campo socialista, ser-me-ia impossível aceitar, por exemplo,
o Prêmio Lenine, se alguém me quisesse conceder, o que não se dá.
Sei muito bem que o Prêmio Nobel, por si mesmo, não é um prêmio
literário do campo ocidental, mas se transforma no que se faz dele
e podem suceder coisas que os membros da Academia Sueca não
podem prever.
Por isto que, na situação atual, o Prêmio Nobel se apresenta objetivamente
como uma distinção reservada aos escritores do Oeste
ou aos rebeldes do Leste. Não se premiou Neruda, que um dos
maiores escritores americanos. Nunca se pensou seriamente em
Aragon, que bem o merece. É lamentável que se tenha concedido o
prêmio a Pasternak e não a Cholokhov e que a única obra soviética
coroada seja uma editada no estrangeiro, proibida em seu país.
Poder-se-ia ter estabelecido um equilíbrio mediante um gesto análogo
no outro sentido.
Durante a guerra da Argélia, quando assinamos o Manifesto dos 111
eu teria aceito o prêmio com reconhecimento, porque ele não teria
honrado somente a mim, mas à liberdade pela qual lutávamos.
Mas isso não aconteceu e é somente no fim dos combates que se
entregam os prêmios.
Na motivação da Academia Sueca se fala de liberdade: é uma palavra
que se presta a numerosas interpretações. No ocidente, se fala de
liberdade num sentido geral. Entendo a liberdade de uma forma
mais concreta, que consiste no direito de ter mais de um par de sapatos
e de comer pão menos duro. Parece-me menos perigoso declinar do
prêmio do que aceita-lo. Se o aceitasse, me prestaria ao que se pode
chamar de uma ‘recuperação objetiva’. Afirma o artigo do ‘Figaro
Litteraire’ que ‘não se teria em conta meu passado político discutido’.
Sei que este artigo não exprime a opinião da Academia Sueca,
mas ele mostra claramente em que sentido seria interpretada minha
caeitação em certos meios de direita. Considero este ‘passado político
discutido’ como ainda válido, mesmo se disposto a reconhecer
certos erros passados perante meus camaradas.
Não quero dizer que o Prêmio Nobel seja um prêmio ‘burguês’,
mas esta seria a interpretação burguesa que dariam inevitavelmente
os meios que conhecemos.
Finalmente, resta a questão do dinheiro. É verdadeiramente grave
que a Academia coloque sobre os ombros do laureado, além da
homenagem, uma soma enorme. Este problema me atormentou.
Ou bem se aceita o prêmio e com a soma recebida se apóiam
movimentos ou organizações que se consideram importantes – de
minha parte seria o Comité Apartheit de Londres – ou bem se recusa
o prêmio em vista de virtude de princípios gerais, e se priva este
movimento ao apoio que necessita.
Renuncio, evidentemente, às 250.000 coroas porque não quero ser
institucionalizado nem ao Leste nem ao Oeste. Não se pode pedir
que se renuncie, por 250.000 coroas, aos princípios que não são
unicamente nossos, mas compartilhados por todos os nossos camaradas.
Foi isto que tornou tão penoso para mim tanto a atribuição
do prêmio como a recusa que manifestei. Quero terminar esta
declaração com uma mensagem de simpatia ao povo sueco.”

2 comentários:

  1. Sempre admirei Sartre. Embora nunca tenha realmente lido seus escritos, li sobre seus pensamentos e sua vida.
    Não sabia que tinha recusado um prêmio Nobel. Curioso.

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  2. Ainda hoje é visto como um gesto muito controvertido. Há quem veja fantasias travestidas de razões. Outros que o Nobel foi desmascarado nas suas armações políticas. Responsabilidade ou não, o pior é que nenhum outro escritor francês tornou a ganhar o Nobel, depois de Sartre

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