Tomo a liberdade para publicar aqui essa poética e sentimental crônica do secretário de Cultura de Aurora, José Cícero
O dia em vi o Salgado lá de cima...
Por José Cícero*
O que me fez viajar de avião pela primeira vez na vida não foi o desejo da experimentação, nem por necessidade profissional, tampouco a curiosidade como tem sido comum a muitos que se dão a este mister. Malgrado está eu já mergulhado na chamada idade da razão. Ainda assim, continuo morrendo de medo de voar. Posto que não confio o suficiente na suposta mecânica infalível das máquinas mundanas. Como de resto, confesso, não tenho tanta pressa de viver...
Nunca quis me dá a este luxo, da ousadia (a meu ver) perigosa de querer inutilmente me igualar ao poder dos pássaros. Ou quem sabe, como muitos dizem; sentir por completo a imensurável sensação de está muito mais perto de Deus.
Mas não. Que me perdoe o nosso bom e visionário Santos Dumont... A sua fantástica invenção ainda não tocou este meu ser medroso e provinciano por completo... Diria, entretanto, que o meu medo de voar ainda é forte o bastante, ao ponto de eu preferir a segurança de continuar andando pelo chão, apenas com receio de alguns pequenos tombos. No fundo, o medo da morte é, em última instância, o grande fantasma que carrego nestes momentos de vacilações imponderáveis. Eis aí a razão maior do meu verdadeiro pavor de avião. Além da crença na lei das probabilidades, claro.
Portanto, como disse, o que me impulsionou a viajar de avião pela primeira vez foi tão somente a vontade de puder enxergar do alto – o rio da minha aldeia Cariri, pelo qual devoto ainda hoje uma verdadeira adoração. Salgado é seu nome. E que para mim é, indubitavelmente, o rio mais doce do mundo. Decerto, o caminho da nossa ancestral colonização. E que, através do qual, subjetivamente, correm todas as minhas melhores memórias afetivas.
Ansiava assim, vê-lo lá de cima em toda a sua grandeza ambiental. Uma realização de um antigo sonho de menino ribeirinho. Queria lobrigá-lo de forma diferente. Do altíssimo monte. Quem sabe, do Nebo do mundo. Na sua compleição mais forte, completa e verdadeira. Como sempre sonhei desde que me entendi por gente.
Aspirava enxergá-lo, da mesma perspectiva dos pássaros altaneiros. Ver como ele era de verdade na sua exuberante geografia hídrico-geológica; serpenteando e cortando o solo sagrado do rincão em que nasci, como que correndo a vida inteira deixando para trás a Araripe. Como um sertanejo do oco do mundo, ansiando também ver o mar pela primeira vez. Este, ainda agora é o Salgado que tenho comigo, junto ao peito e que me fez perder o medo de voar pelo menos por alguns instantes...
Vislumbrar, portanto, com meus próprios olhos do alto dos céus, algo que do chão eu já imaginava, mas queria ter certeza, isto é, todas as agruras da sua degradação total. E a partir daquele momento, na sua versão mais verdadeira e cruel possível. Queria ver o Salgado de cima, quem sabe para cobrar de Deus em meus pensamentos e orações o direito a sua proteção. Deste modo, tive que vencer meu medo e adentrei o avião pela primeira vez, na esperança de avistar todo o panorama do meu Salgado. Seus afluentes riachos, suas feridas abertas e sangrando em carne viva.
E confesso. Caso eu tivesse morrido naquele momento. Havia de morrer feliz e em paz por haver realizado o meu desiderato de menino-adolescente, ou seja, ter visto o Salgado do alto, tal qual o belo carcará – a águia do Nordeste. Mesmo após ter constatado o quão maltratado está todo o seu bioma. Foi-me, por assim dizer, uma visão deveras surreal e inesquecível.
Mas também fiquei triste e desolado quando o vi daquele jeito. Do alto foi possível enxergar todo o amargor daquele rio. Uma imensa angústia invadiu meu peito por completo. Chorei por dentro como jamais havia chorado. Posto que, senti em mim mesmo, no mais profundo do meu íntimo as dores porque passava o rio da minha infância.
Psicologicamente ouvi seus gritos a nos perdir socorro, como som de mil trombetas a romper meus tímpanos, muito além do barulho provocado pelas turbinas daquele avião. Vi o Salgado como uma criança no mais completo abandono. Um cristão moribundo em seus últimos estertores. Um desvalido em seus desesperos. Uma metáfora em carne e osso do próprio homem sertanejo entregue à própria sorte. Toda uma geração de oprimidos e injustiçados de mãos levantadas aos céus, pedindo a intervenção divina para amainar o seu destino.
Fingindo está com medo passei boa parte daquela viagem refletindo. Pensando dentre outras coisas, como tivemos coragem de deixar que aquele rio chegasse aquele ponto. No limite. Quase um caminho sem voltar... para em seguida, concluir: ser a humana raça a própria besta-fera da vida em particular e, das espécies em geral.
E as águas do Salgado que corriam lá embaixo na direção do Castanhão eram como lágrimas dos que choram e sofrem a vida inteira, a própria tragédia das gentes sertanejas. Desiludido daquele avião, pude finalmente perceber que somente eu enxergava o Salgado em seu iminente caos. Dado que, todos os passageiros (ao que pareceu) estavam entretidos demais com seus assuntos comezinhos e cotidianos, ilusões mirabolantes, preocupações de negócios, vontades de poder e de dinheiro...
Os que ali voavam pareciam esquecidos, não apenas do drama salgadiano, mas do planeta inteiro, tamanha era a indiferença diante do horrível panorama que era possível se perceber lá embaixo. Um chão sem cor, calcinado, corroído, retalhado, acinzentado. Quase um novo Saara do meridional cearense. Fumaças das queimadas em evidências. Raridade de clorofila. O verde como que na mais completa extinção total... Uma tragédia ecológica e humana plenamente anunciada.
E quando por fim desembarquei tive a inusitada sensação de que somente eu sobrevivi a grande tragédia daquele vôo marcante. Apenas não compreendi como foi possível, a mais ninguém se dá conta de algo tão tocante, evidente e perigoso quanto está sendo a destruição dos nossos ecossistemas e seus recursos naturais.
E saber que um dia tudo ali embaixo era tomado pelo verde das matas virgens. Abundância de fauna e flora. Um oceano de água doce. E que o rio Salgado corria forte e exuberante o ano todo, engravidando literalmente o Jaguaribe na sua ânsia igualmente invencível de querer ser mar. Eu chorei por dentro como nunca...
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