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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Dylan não é para os loucos, como ossos não são para os cães


Era um  homem de estatura baixa, magro, de cabelos pretos, lisos e cortados à moda de Mick Jagger. Inconfundíveis traços indígenas e caboclos revelavam sua nordestinidade, em meio a maneirismos exóticos, como o sujo casaco verde oliva do Exército que vestia frequentemente. Havia parado em frente à porta de minha casa, de onde escutava o som alto da radiola, tocando um disco de Bob Dylan.
"Em todo o bairro, você foi o único que ouvi gostar dele (Dylan)", explicou. Sua permanência naquela região litorânea não durou mais que um mês. Muitos gostavam pela natureza exuberante. Se olhava para um lado havia dunas gigantes, que chegavam até o mar. Então, extravasava  uma sensação estranha de não se saber quando terminava o deserto e quando começava o oceano. Se olhava para um outro lado, contemplava-se a vegetação escura do mangue e, mais à frente, os ciprestes fálicos e gigantes tentando varar as nuvens.
Os atrativos não o encantavam, com suas evocações do interior, ora severo e seco, ora verde e promissor.
Ao longo do período da sua permanência,  meus sentimentos variavam da rejeição, pelas suas idiossincrasias, à admiração. Só algum tempo depois fui descobrindo que se tratava de um grande desenhista e pintor de traço singular, conhecido por Hermó. Morou num prédio de luxo na Beira Mar e, enlouquecido pela traição de amigos e pela humanidade cruel, como me diziam, resolveu enterrar seus quadros na areia da praia e virou um ser errante, sem endereço certo.
Um de seus mais famosos desenhos contava a história de um preso, cujo título era "O Prisioneiro". Este vivia  num mundo hostil, tendo que se igualar em perversidade aos seus companheiros de presídio para não sucumbir. Mesmo assim, o personagem mantinha a hilaridade e, especialmente, a postura gentil,  bem  melhor do que muitas pessoas que conheci depois, muito mais selvagens e pusilânimes. Não porque precisavam se proteger por conta do instinto de sobrevivência e sim pela qualidade da índole. Quanto ao desenho, um dia o preso foi solto e nunca mais se viu nas tiras de jornais ou em lugar algum.
O carrtunista, ou melhor, o versátil artista não permitia que ninguém o tocasse. Dizia que assim estaria lhe roubando sua aura. "Cada ponto de nosso corpo, traz uma imensa energia. Veja como trabalha a acupuntura", ensinava. Certa vez, quando eu o acompanhava jantando uma bisteca de boi num restaurante, chegou a trocar um olhar carinhoso com um cachorro que lhe fitava. De repente,  jogou toda a carne para o animal, enquanto ele, o racional e passional,  ficou lambendo o osso da costela. Sempre antes de tomar um copo de cachaça, fazia uma imensa careta. Justificava que se antecipando ao horror causando pelo álcool queimando sua garganta, assim a bebida lhe cairia mais suavemente. Depois de engolir todo o líquido, esboçava um  sorriso tão ligeiro como um animal fugindo para sua toca. Naquela época, não existia uma clara compreensão da arte perfomática, onde se incluiria.
Ele dormia numa casa localizada na mesma alameda estreita onde eu residia com meus pais. Não perguntei como ele tomou posse do lugar, com a energia elétrica cortada e iluminada por velas. Constituía-se numa moradia ampla, com três quartos, sala e cozinha. Não possuia móveis. Em um dos quartos, a rede sempre armada. Ali, sabia-se, serviu de esconderijo (ou aparelho) para militantes da esquerda, que eram caçados pela repressão militar. Esparramava-se pelo chão  uma grande quantidade de jornais panfletários e edições antigas do Pasquim. Dentre os livros deixados pelos ex-moradores, estava o Manifesto Comunista. Elisa, então minha namorada, dizia que aceitava tudo de mim: fumar maconha, andar com um hippie, perder o gosto pela arte clássica. Menos reviver, pateticamente, a paródia de Trostki e Rosa Luxemburgo. Isso sim, para ela, virava uma piada.
Meu pai nunca expressou veementemente sua opinião sobre essa ou qualquer outra influência sobre mim. Uma das poucas frases que ouvi a respeito do esconderijo dos subversivos discorria sobre o estigma marginal, tanto no sentido sociológico como policial. Já minha mãe, treinada no terço e nos mantras católicos, repetia 500 vezes: "Meu filho, cuidado com as companhias".
Um dia, Hermó conheceu Elisa e ele se ajoelhou a seus pés. Para o bem ou para o mal, o gesto foi suficiente para me afastar da garota, que, mais tarde, casou-se com um médico e vive muito bem até hoje em São Paulo. Depois, o homem magro e baixo foi embora, avisando que voltaria para o sertão. Nunca mais o vi, desde então.
Ainda hoje escuto Bob Dylan. Olho para a porta da minha casa, ainda conto com o verde aconchegante das mangueiras e cajueiros. Verifico se tem alguém também ouvindo na porta e, às vezes, peço só com o pensamento para que a adolescência se despregue de mim.

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